Posfácio de "ENTRE-CORPOS, por Isabel Rosete - Nele encontram a teoria que me moveu a escrevê-lo, a qual apresenta a minha visão do seu conteúdo específico.
POSFÁCIO
"Aos outros cabe-lhes o universo;
A mim, penumbra, o hábito do verso.
Todo o poema, com o tempo, é uma elegia.
Não há outros paraísos que não sejam paraísos perdidos.
A página vive para lá da mão que a escreve."
Jorge Luís Borges
«Fala-se de Corpos nesta obra que desce até às entranhas do Sentir. De corpos vivos e de corpos mortos; de corpos decaídos e exaltados; de corpos cansados e embriagados; de corpos em todas as suas formas e estados reais ou possíveis.
Também as Almas são aqui celebradas: as puras, as impuras, as que transmigram, as que permanecem neste ou naquele lugar sonhado, vivido, projectado, tão intensamente pela paixão convicta de ser o Tudo, na sua autenticidade iluminatória.
Almas fora ou dentro dos Corpos; almas que transcendem e deixam, por instantes, os corpos suspensos, solitários, entregues a si próprios; almas que os integram, acompanham e animam na leveza ou no peso do Cosmos.
No entanto, em momento algum se defende a dualidade antropológica decretada por Platão na República, no Fédon, no Ménon ou em qualquer outro dos célebres diálogos deste pensador binário. Jamais se perspectiva o Corpo como cárcere da Alma; jamais se concebe a Alma como uma forma, co-afim com tantas outras formas ou eidos imateriais, incorpóreos, residentes no Mundo Inteligível, cujo Corpo em que encarnam é mera cópia ou simulacro, completamente desprezível.
É claro que se procuram as essências, a verdade daquilo que é, em detrimento das aparências, das ilusões dos sentidos ou dos sonhos sem fundamento, da verosimilhança ou de qualquer outro modo de pseudo conhecimento da realidade que a torne o que ela não é, que a ludibrie no seu ser próprio. Porém, as essências na sua materialidade, ou espiritualidade – também o podemos admitir – vistas pelos olhos da Razão que perpassam o parecer-ser e desvelam o originário.
Não há fugas ao ver claramente visto; não há fugas ao ouvir que escuta até ao ínfimo nível dos ultra-sons. Também não há fugas ao tacto, ao olfacto ou ao gosto que, em combinação perfeita com a Razão, nos mostram o Mundo, físico e humano, na veracidade do seu ser.
Todos os sentidos, holisticamente conjugados, se revelam como portas e janelas, como aberturas conscientes e racionalizadas, pela crítica, dos múltiplos estados concretos ou prováveis, perfeitamente possíveis – digamo-lo sem reservas – de todos os Corpos e de todas as Almas.
Há, apenas, estados múltiplos e sequenciais, circunstâncias de comunhão e de separação de Corpos e de Almas, à semelhança do que acontece com todas as coisas animadas, num misto de realidade e de ficção (mera projecção da realidade), que me movem no pensamento e na escrita.
A Vida e a Morte são, em Entre-Corpos, as etapas efémeras e eternas dos Corpos e das Almas, unidas ou separadas pelo Amor, esse estádio outro que tanto é Vida como é Morte. Talvez a Morte seja mais inverosímil do que a Vida e, por conseguinte, a Alma perdure, mesmo que o Corpo seja ou não um caos ambulante.
Também o Amor se presentifica e entifica, nestas linhas escritas com a minha alma e com o meu corpo, com o meu sangue, nas suas múltiplas formas ou séquitos de ser, sem ocultar alguma. Amores de todas as cores e de todos os sons. Amores de todos os sabores, tactos ou cheiros. Amores sentidos, vividos, sonhados, ideados… meus e de todos os outros, passados ou vindouros. Tão-só Amores!
Na trilogia – Vida, Amor e Morte – caminha esta obra, por entre todos os Corpos vivificados ou trucidados pelas Almas que os escoltam ou abandonam. Almas e Corpos que riem; Corpos e Almas que choram, que sonham o Mistério e o Milagre que é o Amor; que almejam a Felicidade e a Glória, como formas de aniquilação do sofrimento, inevitável.
Entre-Corpos, coisas do Amor e da Morte ou da Morte e do Amor são, a limite, o mesmo. Talvez haja uma paixão desmedida, completamente assoberbada, no Amor e na Morte, que nos descontrola o Espírito, sem volta à sensatez. O racional e o emocional misturam-se num novelo de emaranhados fios por nós não desatados. Impera um Amor que se gera nas Ideias, mas que solicita, ao mesmo tempo, o Corpo para a sua materialização efectiva, porque dele inseparável.
Talvez já não possamos estabelecer a diferenciação específica, rigorosa e absoluta, a partição “clara e distinta”, como diría Descartes – o filósofo por excelência dualista da Época Moderna, das “paixões da alma” que não são jamais as “paixões do corpo” – entre os múltiplos conceitos que, sob o nome do Amor, se exaltam, se agitam e giram em seu redor: o “desejo”, o “instinto”, a “libido”, a “tentação”, a “química”, a “carência” do estar só, uma certa “alucinação” que nos impele ao “apetite” e à “provocação” do outro, que esperamos desesperadamente em nós.
Evidencia-se, não obstante, que em qualquer estado em que o Amor e a Morte se apresentem, nada se acata dentro do Eu que, apenas, fervilha e fervilha, sem saber onde está o início, sem saber qual o terminus do seu próprio fim, quer se trate da união consigo, quer da união com o outro.
O impulso à umbilical comunhão dos corpos, cresce numa escala vertiginosa que desatina e não atina em absoluto. Há a inquietude irritante e ardente dos amores não vividos, num intenso enorme, ou numa quase loucura do ser que não é, mas que fustiga e não pára e não se aquieta. Assoma o prazer desejado sem contenção, nem dos músculos, nem das veias, nem das vísceras, nem das células.
O complexo físico-químico que somos revolta-se aquando da junção do Corpo e da Alma, fundidos num desejo só. É o querer que comanda. Um querer que é Vontade do Outro. Sem o Outro não se mantém; sem o Outro não sossega.
Infortúnio da Alma, este querer ilimitado, esta Vontade-de-Poder que determina os sentires incondicionalmente, porque está acima do Tudo, do Absoluto, do Indeterminado, do Telos de todas as coisas animadas ou inanimadas, porque vai para além da Morte e destrona o efémero?
Ergue-se, num escasso instante, o turbilhão existencial que nos transporta para múltiplos estados outros, jamais cogitados. Instala-se o novo, o inesperado, a súbita palpitação do Coração desprevenido emersa pela paixão que, freneticamente, se desenrola sem rumo determinado a priori.
Não há serenidade nos corações dos amantes, na Vida e na Morte, que assim se movem sem qualquer espécie de freios, porque o freio não existe aquando da exaltação dos sentires dispersos, conscientes ou inconscientes. Não pode existir, de modo algum. É imperativo que não exista. Se existisse, não seria nem Amor, nem Morte.
O Amor vulcaniza-se pelos meandros da Vida e da Morte e derrama a sua lava, incandescente, em todas as direcções. Não escolhe trilhos. Não tem deliberações. Não está sujeito a pré-determinações. Apenas escorre, flui, goteja, mas nunca se esgota na sua essencialidade. Há sempre um rasto que fica no e para além do Tempo. Move-se, como perfeito dinamite, sempre pronto a explodir em qualquer momento.
Este descontrolo, nem sempre total, a escrita aclama, qual desabafo que o papel em branco acondiciona, aconchega e, deste modo, tranquiliza o desconforto da Alma e do Corpo que choram, se exaltam ou se preenchem de um prazer ímpar, naturalmente indizível pela objectividade racionalista.
Assim é a Vida. Assim é a Morte. Assim é o Amor.
Assim é o Tempo. Assim é a Eternidade. Assim são os espelhos, côncavos ou convexos, que nos mostram, amiúde, um outro rosto no labirinto dos caminhos que, nem sempre, se bifurcam.
Ainda e sempre o enigma da Esfinge? O erro do nosso estar metafísico que não nos deixa ser Édipo? Ou a ausência da luz do Ser?
“Caminhamos para uma Estrela, nada mais”, “quando, no silêncio da madrugada, o céu pouco a pouco se ilumina no cimo das montanhas…” (Martin Heidegger)»
Isabel Rosete
Janeiro de 2011