Hoje a noite está escura e quente, agradável
para o surgir espontâneo do Pensamento. Apenas algumas estrelas pairam, aqui e
ali, como focos fixos de uma intensidade luminosa e constante, nesse céu de um denso
azul, quase negro, quase misterioso, quase insondável.
Umas brilham mais; outras
menos. Umas estão voltadas para mim e alumiam, indelevelmente, o papel onde
escrevo; outras, viradas para direcções que não identifico, parecem-me
inacessíveis. Mesmo assim, sinto-me iluminada por elas neste ponto tão distante
da minha varanda de onde, fixamente, as observo, refrescando-me com a escassa
brisa fresca que, de vez em quando, me vai chegando.
As árvores recortam o
firmamento, tal como os telhados das casas, que daqui avisto sob várias formas,
por entre as luzes eléctricas que as estradas clareiam.
É tão simples este
meu estar aqui, na minha varanda, numa espécie de sossego musical que me
harmoniza com estas formas ainda não adulteradas da Cidade e da Natureza, em
perfeita união com o espaço cósmico, onde me sinto completamente integrada.
Só não ouço o canto
dos pássaros, já recatados nos seus ninhos!
Como amo esta solidão
que me trás a paz no fôlego aberto da escrita, que move o meu pensamento a exteriorizar-se,
tal como ele próprio é e quer manifestar-se.
Nestes momentos de
serenidade, nada o pressiona ou afasta do seu curso natural. Na sua solidão, diz-se
sem atrofios. A sua liberdade é plena. Determina o seu rumo, os caminhos por
onde vai.
Nestes momentos de
quietude, nada tenho que me impeça de pensar na amplitude total do ser do
pensamento.
Nestes momentos de
tranquilidade, nada me impede de sonhar, de imaginar o Tudo, qualquer coisa
deste ou de outro mundo qualquer. Aqui me amparo e ancoro.
Despeço-me, neste
estado de interrupção da minha existência material, das amarguras da vida,
daqueles pedaços de dor que tanto me atormentaram a alma e me contagiaram o
corpo.
Nesta minha varanda ‑
assim deitada na cama de rede vermelha que me abriga o corpo ‑ suspendo-me. Suspendo-me
literalmente. Entro no in-habitual. Vejo-me em mim mesma – por entre essas
casas, essas árvores e esses postes eléctricos ‑, não como Narciso, mas no meu
próprio Ego despojado de qualquer visão marcada pelo pré-conceito, por um outro,
ou pela ilusão de um outro de mim, pela análise parcial do Eu para com o Eu.
Já não há reflexos,
nem sombras, nem parêntesis… Apenas eu, completamente desnuda, no mais íntimo e
veraz do meu ser, incompleto, nas franjas da sua própria invisibilidade total.
Eis quando surge,
quando se revela ‑ depois de um estado de latência mais ou menos prolongada ‑ a
minha verdadeira Identidade. É um processo recôndito de regresso a mim mesma,
traçado na aura do mais enigmático de mim, aonde desço para, depois, me voltar
a erguer, des-velando as minhas entranhas.
Por este modo de
auto-conhecimento, nasce o amor-próprio no que ele tem de mais genuíno,
original e originário; surgem todas as formas onde o Amor se dá, na comunhão do
mesmo e do outro.
A Identidade e a
Alteridade, o Eu e o Outro, comungam num mesmo ponto: aquele da suspensão e da
introspecção do Eu, que o abre a si mesmo, em si mesmo, e ao outro, na
mesmidade única. Sabendo-se assim, o meu Eu sabe o seu Eu e o Eu de todos os
outros.
IR (semi-heterónimo de Isabel Rosete)