Duvido que seja eu quem escreva
Neste vale de lágrimas impetuoso,
Sem deuses
Sem homens
Sem destino!
Agarro a Vida por um só fio
Tão subtil
Tão leve
Tão frágil…
Como o das asas dos pássaros migratórios.
O sussurro do Mundo envolve-me
Embala-me
Afaga-me
Num lento e doce caminhar.
Sinto-me leve
Abandonei todos os grilhões
Todos os freios
Todas as limitações.
A minha alma eleva-se
Confunde-se
Com as nuvens
De um céu claro
Transbordante de serenidade.
Entrou
Por um momento
Em harmonia consigo mesma
E com o Mundo;
Fechou
Por parcos minutos
Os olhos à hipocrisia
À mediocridade
Ao vil
Ao comum;
Enaltece-se,
Agora,
Com a grandiosidade do Universo;
E venda os olhos
Aos horrores humanos.
Isabel Rosete
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Comentário de:
Luiz Pires Dos Reys 20/12 às 23:21
Cara Isabel,
Há palavras e sentires que exigem recolhimento ou recato que certa forma de pórtico ou praça pública aconselham a que se evitem.
Este seu poema "A Escrita do Mundo" (aliás, poderia dizer o mesmo dos seus últimos outros poemas, na sua generalidade) mostra, entreabre uma greta, uma fissura, uma entreabertura de tal forma aguda e intensa, feita de tensão paradoxal e de tão vívido drama íntimo que quase dói lê-la, tal a sinceridade mesma que, ao mesmo tempo, a Isabel tenta não desnudar de um modo que possa porventura mostrar mais que o justo pudor da intimidade da alma e do espírito sempre aconselhem a que se preserve.
As frases afirmativas são quase punjentes de tanto sentir-se serem escritas como que sobre uma espécie de lâmina que vai em crescente gume de sentir:
"Duvido que seja eu quem escreva"; "agarro a Vida por um só fio"; "o sussurro do Mundo envolve-me" - eis três destas lâminas de sentir. A primeira duvida, para tudo abrir e a tudo abrir-se; a mediana é como que um ímpeto de "empowerment"; a última é escuta do segredo sussurrante de tal gume.
Onde se passa isto? "Neste vale de lágrimas impetuoso"
Com quem ou o quê? "Sem deuses / Sem homens / Sem destino!"
De que modo? "Tão subtil / Tão leve / Tão frágil…"
O que tal faz em quem o sente? "Embala-me / Afaga-me / Num lento e doce caminhar."
O que provoca? "Sinto-me leve / Abandonei todos os grilhões / Todos os freios / Todas as limitações."
E, enfim, que resulta isso? "A minha alma eleva-se / Confunde-se / Com as nuvens / De um céu claro / Transbordante de serenidade."
A que paragens se alcandorou? "Entrou / Por um momento / Em harmonia consigo mesma / E com o Mundo"
O que conclui? "Enaltece-se,/ Agora,/ Com a grandiosidade do Universo"
O que decide? "E venda os olhos / Aos horrores humanos."
Com tudo sou abismicamente síntone e concorde consigo, irmã poeta. Que não numa apenas: no que decide.
Salvo se uma tal venda seja para melhor e mais fundo e mais alto ver além do que, ainda que seja de horror, sempre tem velada mão do Inominável que sempre de outro mais supreendente modo nos rasga de espanto o peito do olhar: em um sentir que é um pensar que compassivo ama, sem condições de imposição alguma.
Muito grato pelo dom da sua poesia, nela trazendo-me a sua mais "álmica" profundeza.
Abraço,
L-
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